Compreende-se, caro leitor, que o regime português lhe dê sono. Faça isto: aqueça o motor com esta selecção de crónicas de Henrique Raposo, veja Portugal, um Retrato Social, de António Barreto, e se ainda se sentir com forças remate ao ângulo com O Dever da Verdade, do inefável Medina Carreira. Uma tarde basta e ficará mais desperto do que se bebesse Red Bull nos intervalos de uma sessão de waterboarding.
Na verdade, os dois livros e o documentário complementam-se: Raposo aponta para as raízes do fracasso da III República, radicadas na Constituição em vigor; Barreto fotocopia a sociedade fragmentada; e Medina Carreira arrasa o leitor com os números da desgraça colectiva. Apesar de os medicamentos receitados pelos três serem distintos, os autores diagnosticam o mesmo: uma maleita grave, terminal.
Alguém disse há tempos que a culpa do estado a que Portugal chegou está... nos portugueses. Será assim, em parte, num país de «gajos porreiros» onde violações crassas do Estado de Direito não merecem o tratamento noticioso e a indignação pública que seriam expectáveis. Pior: a pouca indignação é pessoalista, esquece as falhas constitucionais em que se baseia a corrupção do sistema.
Mas o regime encontra-se encalhado, dependente das decisões das elites. Ora estas, que polvilham os restantes órgãos de soberania e outros (Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas, Autoridade da Concorrência, ERC, etc.), têm tudo menos interesse em amputar-se e refundar a ordem constitucional, para seu inevitável prejuízo. E assim o polvo continua a engordar.
Dominados pelas corporações, os sectores governativos da educação, da Justiça e da segurança, sobretudo, dificilmente são reformados porque há «direitos adquiridos» invioláveis (alguém espera de um governante que encurte as regalias a cerca de 40 por cento dos seus potenciais eleitores?). Se seria masoquista encetar mudanças profundas na esfera pública, resta entreter o povo violando a esfera privada.
E enquanto estamos inebriados neste doce limbo, com produtividade latino-americana e consumo europeu, nada melhor do que discutir a importância de Obama para o futuro nacional, bem como o seu carinho especial pela Europa. É para rir, claro, ver um Presidente que por cá seria dado como de direita ser tão aplaudido pela esquerda anti-capitalista. A mesma esquerda que, tão ciosa da igualdade e tão crítica da «exploração capitalista», não reconhece que é a economia de mercado a base da melhoria de vida asiática. «O capitalismo manda beijinhos de Pequim e Nova Deli», escreve Raposo, algures nas duas horas em que se traga a caipirinha que nos serve.
Rui Passos Rocha
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