«Acabo de ler o livro do Henrique Raposo, A caipirinha de Aron - crónicas de um liberal triste (Bertrand Editora, 2009). Já tinha escrito que considero o Henrique um dos mais talentosos ensaístas políticos da sua geração. Isso não quer dizer que concorde com tudo o que ele diz. Por exemplo, não o sigo, a não ser a título meramente académico ou semântico, quando define o actual regime como uma democracia liberal. Nem sequer tenho a certeza que isto seja uma democracia, quanto mais liberal. Todavia, percebo-o quando se insurge contra a complacência com que a nossa sociedade aceita a falta da liberdade e a sacrifica com mais ligeireza do que a quaisquer outros valores. E também percebo que a sua geração - a que já nasceu com este regime ligeiro e com propensão para badalhoco como ele bem aponta na primeira e na segunda partes do livro - sinta isso mais do que qualquer outra e que, para além da independência intelectual, precise, como pão para a boca, da independência material. Quase fiquei comovido com a sua preocupação com as rendas de casa. O Henrique é um filho não pródigo da propriedade horizontal, o sonho de qualquer pequeno burguês dos anos setenta que, muito legitimamente, não entende por que é que não se há-de andar de casa em casa, a preços módicos mensais, com vista para o Tejo. Tal como, em matéria internacional, se considera um pós-europeu, isto é, alguém que recusa a centralidade da Europa na chamada "cena política internacional". A última parte do livro é consagrada àquilo que apelida de "declínio político da Europa" e a "decadência intelectual dos europeus". Não cometo a injustiça de pensar que, algures, o Henrique se inspirou naquela patusca teoria da "velha Europa" defendida na corte desse extraordinário intelectual norte-americano que é George W. Bush. Uma vez mais, a geração. Não me esqueço do "testamento" de Mitterrand - Da Alemanha, da França -, na prática, um testamento traído pelos homens vulgares que tomaram conta da Europa no final dos anos 90 e que nunca mais a largaram. Por mais voltas que se dê - e nós podemos estar bem quietinhos dada a nossa irremediável periferia, apesar do famigerado Tratado de Lisboa - a Europa "é" a França e a Alemanha e o que elas quiserem que a Europa seja. Ou então não é. E não é seguramente a Ucrânia, a Turquia ou a Albânia. Finalmente, como o Henrique, também sou "americanista". Como ele, tenho muitas vezes "vontade de pegar no barco de borracha e remar até Nova Iorque." E, provavelmente ao invés dele, vontade de não voltar. Jefferson, porém, nem sempre esteve errado. «Ten days before Jefferson died, he wrote some notes for the approaching fiftieth anniversary of his Declaration of Independence. "May it be to the world what I believe it will be... the signal of arousing men to burst the chains under which monkish ignorance and superstition had persuaded them to bind themselves, and to assume the blessings and security of self-government... The general spread of the light of science has already laid open to every view the palpable truth that the mass of mankind has not been born with saddles on their backs, nor a favored few booted and spurred, ready to ride them legitimately, by the grace of God (...) On July 4, 1826, Jefferson died. For posterity he wanted to be known as the author "of the Declaration of American Independence, the statute of Virginia for religious freedom, and father of the University of Virginia." A few hours later, the dying John Adams said, "Thomas Jefferson still lives." But Jefferson had already departed. John Adams had his epitaph ready; it was to the point: "Here lies John Adams, who took upon himself the responsability of the peace with France in the year 1800."» Gore Vidal escreveu isto no seu Inventing a Nation, de 2003. Na realidade, o que nós todos queremos dizer é que temos várias pátrias. Os EUA são apenas uma delas. Tal como a Europa - também a francesa, de Aron, ou a alemã que nos ajudam quotidianamente, na feliz formulação de Nietzsche, a incomodar a estupidez - o é.»
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